Conferência para o XV Encontro Nacional (III Internacional) de Sementeiras de Pesquisa da Psicanálise, em Cartagena das Índias, Colômbia, 27 de outubro de 2022. Versão ampliada para uma mesa de discussão do Círculo de Psicanálise e Marxismo, em Monterrey, Nuevo León, México, 10 de dezembro de 2022. Tradução de Eleutério F S Prado publicada em 18 de junho de 2023 e disponível em seu site Economia e Complexidade
David Pavón-Cuéllar
Bem, fui convidado para falar sobre a relação entre psicanálise e psicologia crítica. Essa relação é múltipla. Mais do que uma relação única e simples, trata-se das relações variadas e complexas que se estabelecem historicamente entre a psicanálise e a psicologia crítica há quase um século.
Parece que foi por volta de 1927 que nasceu a psicologia crítica. Desde o momento de seu nascimento, ele se lançou na psicanálise que já estava lá, no cenário ocidental moderno, há vários anos. De repente, apareceu aqui a psicologia crítica e a primeira coisa que fez foi relacionar-se com a psicanálise: foi a primeira que se relacionou com a segunda, mas não o contrário.
As relações entre os campos da psicanálise e da psicologia crítica foram desde o início, como têm sido até agora, unidirecionais e não recíprocas. Não é exatamente que os dois campos estejam relacionados entre si; é antes que a psicologia crítica tem se relacionado com a psicanálise, seja criticando-a ou usando-a, enquanto a psicanálise geralmente ignorou a existência da psicologia crítica ou demonstrou indiferença ou desinteresse por ela. Digamos que se trate de um interesse não correspondido, o que é bastante compreensível, visto que o campo psicanalítico parece constitutivamente fechado e tende a ser teoricamente autossuficiente e autorreferencial, enquanto a psicologia crítica se caracteriza por sua abertura para o exterior ao qual dirige sua crítica ou de onde extrai seus recursos teóricos.
Ao contrário do campo psicanalítico, o da psicologia crítica não dispõe de recursos teóricos próprios, devendo procurá-los fora dele, na psicanálise e sobretudo no marxismo, mas também em outros programas teórico-políticos, nas diversas correntes da psicologia. nas outras ciências humanas e sociais. Existem psicologias críticas marxistas e freudo-marxistas assim como existem anarquistas, feministas ou decoloniais, humanistas ou discursivas, freudianas ou lacanianas, históricas ou filosóficas. A psicologia crítica tem seu eixo teórico fora dela, sendo assim teoricamente descentrada, enquanto a psicanálise está centrada em si mesma, no tronco da teoria freudiana que pode então se ramificar.
Temos aqui uma diferença fundamental entre a psicanálise e a psicologia crítica: a psicanálise tem conteúdo teórico, envolve uma teoria, enquanto a psicologia crítica é desprovida desse conteúdo, sendo apenas um meio ou um método que consiste em questionar o psicológico. Mais precisamente, a psicologia crítica pode ser definida como um retorno reflexivo da psicologia a si mesma e ao que ela faz parte, como a modernidade ocidental capitalista, colonial e heteropatriarcal. Esse retorno reflexivo é um gesto, uma atitude, um posicionamento.
A psicologia crítica é uma forma particular de se posicionar criticamente diante da psicologia. O interessante é que, nessa posição, a psicologia crítica mostra uma coincidência igualmente fundamental com a psicanálise. Assim como a psicanálise, a psicologia crítica se posiciona à margem do terreno psicológico, às suas bordas, dentro e fora dele, sendo e não sendo psicologia.
O prolongamento e a interrupção do psicológico, sua reprodução e subversão, constituem processos fundadores dos campos marginais da psicanálise e da psicologia crítica. Podemos até dizer que ambos os campos realizam o mesmo retorno metapsicológico da psicologia sobre si, contra si mesma, pelo qual se define a psicologia crítica. Parece então que Helmut Dahmer estava certo ao definir a psicanálise como uma psicologia crítica.
O que é certo é que tanto a psicanálise quanto a psicologia crítica se definem por uma posição contraditória em que tentam e em certa medida conseguem deixar de ser a psicologia que de alguma forma continuam sendo. Esse ser e não ser psicologia é o cerne da coincidência entre psicanálise e psicologia crítica. O cerne da questão é então a psicologia, o que é a psicologia, o que são e não são a psicanálise e a psicologia crítica.
Psicologia
O que é psicologia? Esta pergunta é tão incompreensível quanto as respostas que lhe foram dadas. No entanto, para os propósitos que ora perseguimos, basta ter uma definição de psicologia tão vaga e tão geral que se aplique a tudo o que foi chamado desde que o nome ganhou um significado relativamente estável, graças a Rudolf Göckel, Rudolf Snel e Otto Casman, depois de serem apresentados por Marko Marulić há mais de quinhentos anos. Em outras palavras, como podemos definir psicologia de forma que nossa definição englobe o que foi chamado de psicologia pelos teólogos protestantes do século XVI, pelos filósofos dos séculos XVII, XVIII e XIX e pelos psicólogos dos séculos XIX, XX e XXI?
Considerando o que foi a psicologia em sua história moderna, podemos proceder etimologicamente e defini-la como um saber, uma ciência ou um discurso (um logos ), sobre um objeto preciso ( a psique ): um objeto que se encontraria em cada indivíduo humano , que se distingue de tudo o mais e que é concebido nas mais diversas formas objetivas, entre elas a psique, a alma, o espírito, a consciência, a mente, a vida mental, o mundo interno, a cognição ou processos cognitivos, a subjetividade ou a esfera subjetiva, faculdades intelectuais, intelecto e afeto, subjetividade, caráter ou personalidade.
Essa definição mínima, apesar de sua extrema imprecisão e generalidade, indica três aspectos distintos do objeto psicológico: três aspectos que já foram questionados na filosofia e que continuam sendo problematizados e rejeitados na psicanálise e na psicologia crítica. Refiro-me a uma certa objetividade, uma certa individualidade e dualidade.
Em primeiro lugar, ao ter um objeto e ao concebê-lo objetivamente, a psicologia está objetivando a única coisa que não pode ser objetivada por definição, o subjetivo e até o próprio sujeito, como Kant já verificou. Em segundo lugar, ao colocar seu objeto no indivíduo humano, a psicologia está individualizando algo que só existe de forma coletiva, relacional ou transindividual por meio da sociedade, da cultura e da história, como já apontavam Feuerbach e Marx. Em terceiro lugar, ao distinguir seu objeto de tudo o mais e especificamente do corpo e do mundo, a psicologia está separando partes inseparáveis de uma mesma unidade, como já advertiam Marx e Engels.
Dualismo, individualismo e objetivismo
O instrumental crítico marxista permite vislumbrar o trabalho da ideologia na gênese de cada um dos três aspectos do objeto psicológico a que acabo de me referir. Cada aspecto revela uma das três orientações ideológicas típicas da modernidade capitalista. Essas ideologias são a objetivista, a individualista e a dualista. Deixe-me me debruçar sobre cada um deles por um momento para mostrar brevemente como eles operam em psicologia.
A separação psicológica entre o psíquico e o corpóreo-mundano exterioriza um dualismo em que Marx e Engels descobriram uma consequência ideológica da divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, divisão que aparece, por sua vez, como efeito da divisão das classes. Tudo começa quando a classe dominante monopoliza o trabalho intelectual e condena a outra classe ao trabalho manual. Essa dissociação do intelectual e do manual entre diferentes sujeitos faz com que o intelecto se separe das mãos, a mente se distancie do corpo e do mundo material, a psique se distinga de tudo o mais, dando origem à separação dualista constitutiva do objeto da psicologia. Tal objeto e sua abordagem psicológica emergem como privilégios de classe: como expressões da divisão de classe subjacente ao dualismo.
Além de dualista, a ideologia fundadora da psicologia tem uma orientação individualista. Essa orientação é o que mutila e contrai o subjetivo de tal forma que ele pode passar pelo estreito funil psicológico da interioridade individual. Temos aqui o mesmo processo, já repetidamente descrito na tradição marxista, que se observa no individualismo burguês liberal e neoliberal que consegue quebrar as poderosas classes, comunidades e coletividades organizadas, esmagando-as e pulverizando-as em seus elementos constitutivos, nas
impotentes indivíduos, cada um com seus miseráveis atributos, como seu voto e seus direitos individuais. Como bem observou o surrealista e freudomarxista René Crevel, essa estratégia de dividir para conquistar também opera por meio do individualismo psicológico.
Além de individualista e dualista, a psicologia é objetivista. É assim na medida em que procede ideologicamente como outras ciências humanas objetivas, objetivando e assim neutralizando ou suprimindo um sujeito que não pode ser objetivado por definição. Esse sujeito suprimido na objetividade científica vem confirmar a definição lacaniana de ciência como “ideologia da supressão do sujeito”.
Ao mesmo tempo, a conversão de um mesmo sujeito em objeto de conhecimento científico prepara e facilita sua conversão em objeto do sistema capitalista, sistema que tende significativamente a subsumir a ciência junto com a cultura como um todo. Estabelecendo-se como um grande Outro, o capital aparece cada vez mais como o único sujeito, enquanto os sujeitos humanos aparecem cada vez mais como objetos do capital e suas diversas expressões ideológicas, entre elas as ciências objetivas.
Concepções mesoamericanas e marxistas de subjetividade
Como vimos, o objetivismo, o individualismo e o dualismo revelam os vínculos ideológicos internos da psicologia com o sistema capitalista, com o mundo burguês e com a sociedade de classes. Essa realidade socioeconômica, típica da modernidade ocidental, é o que dá à nossa ideia psicológica da subjetividade humana sua forma particular. As orientações ideológicas dualistas, individualistas e objetivistas de nossa psicologia pertencem a uma tradição cultural específica e a um momento preciso no desenvolvimento histórico dessa tradição cultural.
Se nos afastarmos da modernidade ocidental, encontraremos outros saberes sobre o sujeito em que não há vestígios de objetivismo, individualismo e dualismo. Este é o caso das concepções indígenas mesoamericanas de subjetividade às quais dediquei uma investigação que durou vários anos. Ao analisar as formas como os povos originários do México e da América Central representam o ser humano, descobrimos uma subjetividade inobjetável, uma comunidade irredutível a seus elementos individuais e uma totalidade indivisível que não se deixa dividir de forma dualista entre o psíquico e o somático.
Ao não cair no dualismo nem no individualismo nem no objetivismo de nossa psicologia, o conhecimento ancestral da Mesoamérica nos oferece concepções de subjetividade radicalmente diferentes da moderna psicologia ocidental e que podem, portanto, servir de ponto de apoio para criticá-la. É assim que os saberes de outras culturas podem se tornar recursos para a psicologia crítica, o que efetivamente tem acontecido em correntes emergentes como a indígena, a africana e a decolonial. No entanto, essas correntes são relativamente recentes e constituem a regra e não a exceção, pois tem sido costume de a psicologia crítica buscar seus recursos na própria modernidade ocidental, onde também existem concepções de subjetividade que diferem das psicológicas e que não cair em suas orientações ideológicas.
Pensemos, por exemplo, na perspectiva marxista, que sem dúvida foi a mais importante e influente na história da psicologia crítica. O marxismo concebe a subjetividade: primeiro, de forma relacional e não individualista, como um nó de relações sociais e não como um indivíduo isolado; em segundo lugar, de forma dialética e não objetivista, como sujeito capaz de se objetivar e não como objeto; em terceiro lugar, em chave monista e não dualista, como uma existência corpórea-mundana consciente e não como uma psique separável do corpo e do mundo.
O marxismo desenvolveu, assim, uma concepção relacional, monista e dialética da subjetividade que desafia respectivamente o individualismo, o dualismo e o objetivismo da psicologia, mas também fornece argumentos poderosos contra essas orientações ideológicas, mostrando-nos como elas servem à dominação dividindo e neutralizando para vencer, ou seja, desfazendo as relações sociais no individualismo, cindindo o sujeito no dualismo e reduzindo-o a objeto do capital no objetivismo.
A psicanálise como ponto de apoio para a psicologia crítica
Entendemos que o marxismo tem sido o mais importante ponto de apoio da psicologia crítica na modernidade ocidental. No entanto, esse ponto de apoio não foi o único e atualmente é apenas um entre muitos outros, incluindo o anarquismo, o feminismo, a caixa de ferramentas foucaultiana, o socioconstrucionismo, a virada discursiva e o projeto comunitário liberacionista latino-americano. Ora, se essa lista fosse exaustiva, deveríamos incluir nela a psicanálise, que, então, constituiria mais um ponto de apoio para a psicologia crítica? Aqui está a grande pergunta que agora está sendo feita e que não é fácil de responder.
Formulemos a questão de outra forma: será que a psicologia crítica pode se basear na doutrina freudiana? Em outras palavras, a psicanálise oferece uma ideia não psicológica do sujeito que pode ser usada para criticar a concepção psicológica? Esta pergunta pode receber duas respostas opostas e igualmente válidas.
A primeira das respostas é afirmativa: sim, a psicanálise pode ser útil à psicologia crítica porque teoriza o sujeito de uma forma que nada tem a ver com a concepção psicológica dualista, individualista e objetivista. Para começar, o objetivismo não tem lugar na doutrina freudiana porque o objeto da psicanálise não é o sujeito, mas aquilo que é tão paradoxal e evasivo que Lacan concebeu um (pequeno) objeto.
Quanto ao sujeito, ele aparece na psicanálise como algo radicalmente inobjetável, irrepresentável, inassimilável a tudo o que dele se pode saber, irredutível a tudo o que dele se pode predicar. Temos aqui, na psicanálise, uma abordagem antiobjetivista que é diametralmente oposta ao objetivismo da psicologia e que, portanto, pode ajudar a psicologia crítica a questioná-lo.
Além de antiobjetivista, a psicanálise é antiindividualista. O sujeito da psicanálise, ao contrário do da psicologia, não é um indivíduo, um “individuus”, que significa “indivisível” em latim. Ao contrário, o sujeito freudiano é divisível e dividido entre diferentes identificações, entre posições opostas, entre instâncias conflitantes. O único indivíduo aqui é um reflexo espelhado da consciência.
Na realidade, o sujeito freudiano é individual e transindividual. É ele e seu objeto. É Um e Outro. É alteridade e não apenas identidade. Não é apenas um ego, mas também um id e um superego. São ao mesmo tempo coisas tão contraditórias quanto a espécie, a cultura e o ponto de contato entre ambas. Tudo isso está em contradição com a ideia psicológica individualista do sujeito.
A psicanálise não apenas contradiz o individualismo e o objetivismo, mas também o dualismo constitutivo da psicologia. Enquanto a ideia psicológica do sujeito é a de algo psíquico nitidamente diferenciado em relação ao físico e ao somático, a psicanálise reconhece a comunicação e a continuidade entre um e outro. O sujeito freudiano, para dizer cartesianamente, é uma coisa extensa e não apenas uma coisa pensante. Não termina em seu eu ideal. Seu histórico pulsional é tão mental quanto corporal. Suas conversões histéricas são tanto do corpo quanto da alma. Não há duas esferas separadas aqui, mas apenas uma. O monismo psicanalítico discorda de qualquer dualismo psicológico.
Psicologia psicanalítica
Se considerarmos como a psicanálise rompe com o dualismo, com o individualismo e com o objetivismo, será justo que respondamos afirmativamente à pergunta sobre sua utilidade como recurso teórico para a psicologia crítica. No entanto, essa mesma pergunta também poderia receber de nós uma resposta negativa se considerarmos a tendência irresistível da psicanálise de degenerar em uma corrente psicológica entre outras.
Essa psicologização é bastante evidente quando vemos a psicanálise tornar-se dinâmica ou psicologia do ego ou do self, mas o mesmo processo também pode operar de forma oculta mesmo na mais antipsicológica das correntes freudianas. É o que acontece, por exemplo, quando os psicanalistas lacanianos apresentam seus casos clínicos e aplicam a eles seu receituário lacaniano, arrebatando qualquer voz dos sujeitos, separando-os dualistamente de sua exterioridade material transindividual e reduzindo-os a uma simples ilustração objetiva individual daquilo que Lacan elaborou.
Os desvios psicológicos da psicanálise são compreensíveis em uma época de reinado absoluto da psicologia. Se os próprios sujeitos se veem cada vez mais como objetos psicológicos encerrados em sua individualidade e irremediavelmente separados de seu corpo e do mundo, por que os psicanalistas deveriam olhá-los de maneira diferente e ouvir o que às vezes nem precisam? O homem sem inconsciente, como Recalcati o chama, é o fundamento da psicologia psicanalítica.
A psicologização progressiva da herança freudiana se baseia em uma mutação histórica decisiva pela qual os sujeitos se veem cada vez mais virtualizados, separados da materialidade corpórea e mundana, encerrados em sua interioridade individual ideal e reduzidos à condição de objetos do capital e de seus vários dispositivos tecnológicos, disciplinares e ideológicos, incluindo a psicologia. O grande Outro da cultura, cada vez mais subsumido no capital, deixa cada vez menos espaço para a existência transindividual e material do sujeito. É essa história do mundo que determina o trágico destino psicológico da herança freudiana.
História
Uma vez psicologizada, a psicanálise deixa de ser um recurso teórico útil para a psicologia crítica e torna-se um alvo para ela, um objeto a ser criticado, um alvo a ser alvejado. Este alvo reproduz o dualismo, o objetivismo e o individualismo, mas também outras orientações ideológicas de ótica psicológica, incluindo o universalismo, o abstracionismo, o idealismo, o adaptacionismo, o familialismo e o apolitismo. É como se toda a ideologia subjacente à psicologia reabsorvesse a psicanálise e anulasse o que a distingue da psicologia e permite questioná-la.
Um dos principais dilemas do psicanalítico é o que o faz dividir entre ser e não ser algo simplesmente psicológico, entre ceder e não ceder à sua reabsorção na psicologia, entre deixar-se assimilar por ela e preservar-se obstinadamente dela e criticando isso. Podemos discernir aqui duas formas de aparecimento da psicanálise, como objeto criticável e como recurso utilizável, que marcam toda a história da relação entre a psicologia crítica e a herança freudiana. Essa história, como veremos a seguir, se desenvolve como uma série de cisões ou dissociações da psicanálise entre o que dela se utiliza e o que dela se critica na sucessão de propostas da psicologia crítica.
Os pioneiros Georges Politzer e Lev Vygotsky usaram a casuística de Freud, mas criticaram suas generalizações metapsicológicas, julgando-as injustificadas, abstratas e ideológicas. Valentin Voloshinov também descobriu uma ideologia que poderia ser criticada na psicanálise, embora sem deixar de apreciar o potencial da ideia freudiana de conflitos psíquicos para criticar as visões psicológicas homeostáticas e adaptativas. O potencial crítico da psicanálise, tal como pensado pelo freudo-marxista Wilhelm Reich, permite questionar o idealismo burguês da psicologia: o mesmo idealismo que também será reproduzido por algumas derivas psicanalíticas burguesas.
Os surrealistas André Breton e René Crevel deploram o fato de a psicanálise recair na mesma psicologia dualista que permite a crítica. Por sua vez, os frankfurtianos Max Horkheimer e Theodor Adorno usam da psicanálise o mesmo que os faz contestá-la: sua revelação da irracionalidade na racionalidade psicológica. Essa irracionalidade está no mesmo lugar do conflito e da negatividade para os quais o jovem Michel Foucault e alguns de seus epígonos, como o grupo de Julian, Henriques, Wendy Hollway e Valerie Walkerdine, apreciam positivamente a psicanálise para a qual também direcionam seus questionamentos.
Enquanto isso, Louis Althusser e seus seguidores franceses e argentinos, entre eles Michel Pêcheux, Didier Deleule, Carlos Sastre e Néstor Braunstein com seus colaboradores, utilizam a psicanálise para cortar ou romper epistemologicamente com a ideologia psicológica, mas também criticam a ideologização da doutrina freudiana. recuperação pela psicologia. A dupla ligação com a psicanálise é encontrada novamente na obra do alemão Klaus Holzkamp e do britânico Ian Parker, talvez as duas figuras mais importantes da psicologia crítica no último meio século.
No que diz respeito à psicologia crítica de Holzkamp, por um lado ela valoriza a psicanálise porque ela é colocada nas mãos dos sujeitos em vez de proceder como a psicologia e aplicar-se a eles como objetos, mas por outro lado ela a questiona por que universaliza o histórico particular, familiariza o social, desacredita o coletivo e deslegitima ou reprime o político. Já Parker faz uma distinção no campo psicanalítico entre correntes que julga serem criticadas por seu alto nível de psicologização, como a kleiniana ou a relacional, e perspectivas que podem ser utilizadas devido ao seu caráter claramente antipsicológico, entre elas principalmente a proposta lacaniana.
De minha parte, seguindo a tradição marxista freudiana, gosto de ver na psicanálise um produto ideológico-psicológico da modernidade capitalista, mas também algo radicalmente diferente da psicologia: uma expressão crítica sintomática da crise dessa modernidade, de suas tensões e contradições, pois dilaceram cada sujeito de forma única. Da mesma forma, como Lacan e Juliet Mitchell e outras feministas já fizeram, vejo a psicanálise como o sintoma de uma crise do patriarcado: como algo em que um sistema patriarcal geralmente é ocultado e silenciado pela psicologia.
Finalmente, no mesmo sentido, admito que a psicanálise tem um estatuto colonial como qualquer outro paradigma psicológico europeu-americano que tenha sido exportado e universalizado, mas ao mesmo tempo considero que ela revela uma crise de absolutização do conhecimento ocidental que está subjacente à colonialidade e penso que por isso representa um instrumento essencial para a crítica de todos os produtos coloniais, incluindo a psicologia. Além disso, como se não bastasse, aposto na escuta psicanalítica para estabelecer uma relação diferente com a alteridade fora e dentro de nós: uma relação diferente do olhar colonial que muitas vezes também é um olhar psicológico.
Para concluir
A história que acabo de esboçar nos mostra uma incessante dissociação da psicanálise entre suas aparências como objeto de crítica e como recurso utilizável da psicologia crítica. O que falta aqui é uma terceira intervenção possível da psicanálise que até agora não foi plenamente realizada. Refiro-me à sua intervenção disruptiva e subversiva como aproximação irredutível à sua utilização no retorno reflexivo do psicológico sobre si e sobre aquilo de que faz parte.
Ao não se deixar reduzir à psicologia crítica, a psicanálise nos permite interrogá-la, levando seu gesto crítico às últimas consequências, até o ponto de enrolar o laço, a permitir que ela se critique como psicologia e não apenas critique o terreno psicológico em geral. Não se deve esquecer que a psicologia crítica, como a psicanálise, tem uma posição contraditória nas bordas ou fronteiras do terreno psicológico, dentro e fora dele, sendo e não sendo psicologia. Isso significa que a psicologia crítica também é, como a perspectiva psicanalítica, suscetível à crítica em seus desvios psicológicos.
Para questionar a psicologia crítica, a psicanálise constitui um recurso poderoso e talvez inigualável. Um questionamento freudiano fundamental da psicologia crítica deve ser dirigido à própria crítica. Por que persistir e se esforçar para criticar a psicologia? Por que não tentar deixá-la? Que desejo nos mantém apegados a ela, tornando-a objeto de nossas perguntas?
O questionamento freudiano, para dar apenas mais um exemplo, deveria ser dirigido à própria ideia do retorno reflexivo da psicologia a si mesma e, mais precisamente, à confiança ingênua na reflexividade. O que nos faz confiar na transparência da reflexividade? Essa confiança no reflexivo não é tipicamente psicológica? A reflexividade não reproduz a mesma opacidade imaginária especular para a qual aponta nosso questionamento da psicologia?